Agência UVA Barra Assistiu: Desterro

A diretora, Maria Clara Escobar, logo no prólogo do segundo longa metragem, “Desterro”  (2020), se encarrega de dotar a instabilidade e especialmente o processo de desconcerto e gastura de redes de relacionamentos interpessoais frágeis descritas na sequência inicial. O primeiro quadro do filme enfatiza partes de um corpo masculino erguido no que se imagina a varanda de uma casa com vista limitada para as paredes e ao telhado, enxergamos somente a barriga, os braços e parte da cintura,  a câmera se desloca gradativamente até o telhado e somos introduzidos ao primeiro capítulo do filme.

Temos uma movimentação de câmera de um plano onde a mãe observa o filho andar com a bicicleta de rodinhas em uma tarde singela. A edição e mixagem sonora assinados por Nahuel Palenque e Leandro de Loredo, respectivamente, reforçam a sonoridade da bicicleta e o impacto junto ao solo, a ação poderia parecer prazerosa e confortável no senso comum, embora o som antecipe  certo desconforto pela atmosfera ruidosa e cheia de atritos captadas pelo ambiente.

O pai se aproxima e em uma mera fração de segundos, começa a chover exponencialmente, a criança ainda tenta continuar a ação que se prova insustentável com o apertar da chuva, a mãe e a criança entram primeiro na casa, o pai se encarrega de fechar a porta e entra nos aposentos solitariamente. Nestes fragmentos o desconcerto se dá por uma antecipação de uma figura indecifrável, nebulosa deste homem mediante os relacionamentos sustentados ao longo do filme e a chuva como signo de caos e intranquilidade que afeta a estabilidade que se mostrará cada vez mais em dúvida.

Foto: Divulgação

Regressando a direção sete anos após o lançamento do documentário “Os Dias Com ele” (2013), a vida pública e privada do professor e dramaturgo, vítima da ditadura militar Carlos Henrique Escobar se entrelaçam com o encontro, muitas vezes conflitante por parte da filha e diretora do documentário, perpassando dias, situações rotineiras, com falas reveladoras tanto dos momentos vividas no período ditatorial, como o incômodo em relação em como ela irá revelar as falas e facetas de Carlos como figura pública para o espectador.

É possível perceber semelhanças com o apreço por entender e pautar relações humanas e estabelecer situações conflitantes, contudo as semelhanças são obviamente restritas a estas características, não somente por se tratar de um longa ficcional, mas também por uma estrutura narrativa não-linear, frequentes intervenções autorais fortemente associadas a performances cênicas, poéticas em que se dão por ora por direcionamento mais naturalista e organicamente expresso, ou assume uma forma diretamente performática com quebras de quarta parede.

Exemplificado em momentos de conversas ocasionais dentro de um metrô em que Laura (Clara Kunzo) observa um diálogo franco e aberto sobre a ausência e o desejo da reparação de um amor rompido, em que é suprimido com o tempo factual da passagem de estações, a imagem segue sem grandes efeitos estéticos e apenas sofre uma breve transição para estabelecer a personagem de Kunzo no universo da ação, e é retomada a conversa no idêntico plano médio em que estava anterior ao corte.

Porém em outra cena, uma personagem (Bárbara Colen) que já teve uma participação em um monólogo sobre si e em que se compara a um gato e contando a primeira vez que excedeu a voz a partir de um relacionamento com rugas e reaparece, novamente quebrando a quarta parede declamado um poema político e impactante sobre as coerções e traumas por meio de uma sociedade altamente impositiva, julgadora e incontornavelmente machista. A iluminação da personagem é por uma luz semi difusa que age com uma região intensa de penumbra e sombras nítidas e uma desorientação espacial pela escuridão marcado apenas por poltronas e persianas visivelmente vermelhas e sombras em demasia.

Ao ter mencionado os termos desorientação e demasia, “Desterro” parece utilizar de ambas palavras como mote principal, onde pode se perceber uma ideia de impermanência, de constante retirada como uma partida que está prestes a sair, mas se arrasta entre olhares que não se cruzam, cadeiras em locais opostos, conversas monocórdicas como uma progressão de um estágio de embotamento afetivo e desgaste emocional constante, e estas características e aspectos formais se aproximam do cinema de Chantal Akerman.

Entretanto a disparidade, a monotonia, o sofrimento, cinismo das relações gradualmente perdem a potencialidade por símbolos, analogias e discursos tensionados a um esgarçamento, em que as participações performáticas de um elenco renomado com muitos nomes que participaram de filmes importantes da filmografia do cinema brasileiro recente, nomes como, Grace Passô (Temporada, No Coração do Mundo) Isabél Zuaa (As Boas Maneiras, A Viagem de Pedro), têm a potência diluída gradativamente em discursos e manifestações que não são efetivos em materializar provocar a potencialidade de sentimentos desejáveis.

Apesar de trabalhar propostas complexas e ousadas e debater questões necessárias à sociedade como um todo, “Desterro” se enfraquece pela dificuldade de estabelecer a sustentação coesa dos caminhos percorridos para de fato ressoar o peso deste deslocamento em exílio. O filme estreia nesta quinta-feira, 22/09, nos cinemas brasileiros.

Assista ao trailer:


Marcio Weber – 1º período

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