Dirigido por Hayao Miyazaki, um dos responsáveis pela criação dos estúdios Ghibli (“Meu Amigo Totoro” (1988), “A Viagem de Chihiro” (2001) e Porco Rosso (1992)), “O Menino e a Garça” (2023) foi vencedor do Globo de Ouro e indicado ao Oscar como melhor animação (2024). O longa está previsto para estrear no Brasil em 28 de fevereiro de 2024. A animação conta a história de Mahito Maki, um garoto que vive em Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial e perde sua mãe em um incêndio. Logo, seu pai, um industrial que trabalha para o esforço de guerra, se casa com sua cunhada, o que força Mahito a se mudar para a antiga mansão no campo em que sua mãe e sua tia cresceram; lá uma garça guia o garoto a um mundo paralelo.

Foto: Divulgação

De modo a sustentar a lisergia de que se serve o longa, a trilha sonora brilha com seu bucolismo e sua delicadeza, o que nos faz adentrar a este novo mundo sem que nos sintamos deslocados; pela trilha parece que lá também somos bem-vindos, e que naquele mundo podemos encontrar as respostas para o nosso. Paralelamente, a direção de Miyazaki não nos decepciona. A fábula familiar, a viagem metafísica aos confins da consciência, a tentativa de reconstrução e o onipresente sentimento de que talvez daqui a pouco as coisas melhorem acompanham toda a obra, sendo este, talvez, um dos filmes mais íntimos e pessoais do diretor. Em suas duas horas de duração, o que para muitos pode ser de uma morosidade ímpar, Miyazaki se permitiu ter seu tempo para contar a sua própria história.

A direção de fotografia é outra área que se destaca. As sombras e contrastes; é com o incêndio que transforma a noite em dia, nas brasas que caem como gotas de chuvas sobre os habitantes em desespero, logo substituídos pelo verde das montanhas e o monocromático azul do mar, que o filme cria uma identidade visual única com texturas singulares. Nesse contexto, um elemento se destaca: o vazio. A composição se ampara na filosofia japonesa que nos brinda com o conceito de MA (間) que dá a ideia de espaço ou intervalo. O ideograma, formado por dois elementos centrais “Porta\Portal” e “Sol”, diz respeito aos momentos de vazio que as composições artísticas constroem. Seja o fundo branco sobre o qual uma pintura descansa, seja nas hastes verticais e horizontais que determinam a passagem de um quadro para o outro nas HQs, seja nos intervalos entre uma nota musical e outra numa canção, o vazio, nas obras de Miyazaki são momentos de contemplação silenciosa que nos levam a absorver personagens e situações; é Satsuki e Totoro esperando um ônibus na chuva sem falar nada (1988) ou o Porco Rosso (1992) vagarosamente em seu avião sobre as nuvens – em “O Menino e a Garça” é possível enquadrar e fotografar o vazio e entendê-lo como verbo e objeto. 

Já o roteiro, no melhor estilo Alice no País das Maravilhas, nos brinda com mundos paralelos onde o tempo não existe, e metáforas filosóficas que versam sobre a apreciação da individualidade, a introspecção e o culto à ancestralidade, elementos fundamentais da cultura japonesa que se mesclam à identidade de seu povo por meio das criaturas antropomorfizadas e entidades misticas e folclóricas que o filme nos apresenta. Tal como Mahito, Miyazaki vivenciou os horrores da guerra, precisou se mudar com seu pai, bem como perdeu amigos e familiares em meio às sangrentas batalhas do pacífico. Diferente do garoto que perdeu a mãe, o diretor conviveu com a tuberculose da sua; a morte espreitava nas cercanias. Essa miscelânia dá a tônica central para o enredo da obra: o luto. 

Para Freud, o luto nos põe frente ao espelho narcísico, e nos força a encarar a própria finitude da vida e a inevitabilidade da morte. Desse modo, o mundo de fantasia onde Mahito vivencia sua aventura se comporta como uma forma de processar sua ansiedade inconsciente e a tentativa de atribuir significado ao desconhecido. Nesse cenário, é possível identificar a clássica dinâmica dos estágios do luto de que a psicanálise se serve. A fase da raiva ocasionada pela abrupta mudança de ares, se complementa com a resistência do garoto em aceitar sua tia como sua nova mãe (que está grávida), seguida pela fase da depressão, onde o isolamento e a solidão se tornam onipresentes. Em seguida, observamos a negação e a barganha, quando a garça diz ao garoto que sua mãe está viva e Mahito, mesmo sabendo que é mentira, inicia sua jornada para ter a certeza. Essa ideia se sustenta na noção de perda ambígua, já que o garoto não viu o corpo da mãe, o que alimenta a esperança de retorno visto que para a morte não foi dado um rosto. Por fim, a fase da aceitação se mostra ao final, onde a resiliência frente aos dois mundos finaliza a jornada do garoto. 

Contudo, não é a jornada do herói clássica do monomito de Campbell que vemos ser construída, com seus vilões predefinidos e seus protagonistas em ascensão; é a jornada do eu em meio ao auto conhecimento imerso na sua própria introspecção. De mãos dadas com a melancolia e com o sabor de despedida, Miyazaki dá forma ao vazio e ao esquecimento, e mesmo com a certeza de que um dia tudo será passado, a fantasia que é a vida ainda encontra eco. Em “O Menino e a Garça” vemos o “Irlandês” (2019) de Scorsese ou o “Dor e Glória” (2019) de Almodóvar; o filme legado! O fim de um ciclo pessoal e artístico de um diretor genial que marcou gerações com sua jornada criativa e paulatinamente conquistou a eternização de si mesmo no cenário mundial.

Assista ao trailer!


Vitor Luiz Leite — 3º Período

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